Canibais e Reis

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12 de Novembro, 2008

O lobie das estatinas em acção, ou como passar de pessoa saudável a paciente insuficientemente diagnosticado

Autor: O Primitivo. Categoria: Saúde

Fonte: O Público (11-11-2008).

Por mais desatento que você ande, é impossível não reparar neste novo estudo, o Júpiter (Justification for the Use of Statins in Prevention: an Intervention Trial Evaluating Rosuvastatin), de que a imprensa tanto fala, apesar de não saber ao certo o que é. E como não há cão nem gato que não esteja a falar disto, aqui vai também mais um ensaio sobre uma questão que nos interessa a todos: a forma como a medicina moderna, qual indústria criadora de doenças, se pretende apoderar até das pessoas saudáveis!

Na prática, o Júpiter (não é o planeta) consiste num estudo encomendado pela indústria farmacêutica, que parte com certos objectivos à priori (o título diz tudo), designadamente o de demonstrar que até pessoas saudáveis lucrariam tomando estatinas todos os dias. Ou seja, a filosofia subjacente é a de que, como diria o meu médico, que por acaso não costumo visitar muitas vezes, "você não é uma pessoa saudável, mas apenas um paciente insuficientemente diagnosticado".

"Background: Increased levels of the inflammatory biomarker high-sensitivity C-reactive protein predict cardiovascular events. Since statins lower levels of high-sensitivity C-reactive protein as well as cholesterol, we hypothesized that people with elevated high-sensitivity C-reactive protein levels but without hyperlipidemia might benefit from statin treatment."

Em Portugal saiu a notícia em todo o lado, por exemplo, no Público e na TSF, e também nos demais jornais. É o jornalismo de "copiar/colar" no seu melhor. Por exemplo, pode lê-la no Público aqui e ouví-la na TSF aqui. A imprensa generalista e as autoridades de saúde acorrem sempre com grande entusiasmo a publicitar este tipo de estudos, a reboque da imprensa internacional e sem qualquer espírito crítico-científico, apesar dos resultados estranhamente "superiores" ao que outros estudos, de natureza similar, conseguiram demonstrar até ao momento. Por exemplo, mesmo a propósito, na TSF pode ler-se o seguinte:

"Este estudo abrangeu mais de 17 mil pessoas com mais de 50 anos e não chegou a ser concluído, uma vez que os resultados superaram as expectativas.

Para o cardiologista José Manuel Silva, dos Hospitais da Universidade de Coimbra, que assistiu à apresentação deste estudo, a descoberta desta substância é um marco histórico na prevenção das doenças do coração.

É a primeira vez que um estudo com estatinas, substâncias usadas para reduzir o colesterol revelou reduções de risco de cerca de 45 por cento no risco de ataques cardíacos, derrames e mortes súbitas por causas cardiovasculares.

Para José Manuel Silva, acabou de se abrir uma porta para um novo conceito.

A prevenção das doenças do coração poderá ser alargada depois deste estudo ter demonstrado com segurança que uma estatina diminui riscos e salva vidas."

Fonte: Rádio TSF.

Mas o que nem a imprensa, nem sequer a própria classe médica, questionam é o rigor científico e a independência destes resultados, tão espectaculares, ou os seus objectivos claramente publicitários, apesar de ser público que o Júpiter é um estudo patrocinado pela AstraZeneca, a farmacêutica produtora do, isso mesmo, Crestor (rosuvastatin)! Resultado final: ciência pouco "robusta", por parte de investigadores muito comprometidos com a indústria que lhes paga, e que agora devem estar a esfregar as mãos com as lucros de um "estudo" tão favorável à casa-mãe. E dizer só comprometidos até talvez seja um eufemismo, confome se pode ler na extensíssima declaração de interesses dos autores do estudo. Aqui fica unicamente a do autor principal do Júpiter, o Dr. Paul Ridker:

"Dr. Paul M. Ridker reports receiving grant support from AstraZeneca, Novartis, Merck, Abbott, Roche, and Sanofi-Aventis; consulting fees or lecture fees or both from AstraZeneca, Novartis, Merck, Merck–Schering-Plough, Sanofi-Aventis, Isis, Dade Behring, and Vascular Biogenics; and is listed as a coinventor on patents held by Brigham and Women’s Hospital that relate to the use of inflammatory biomarkers in cardiovascular disease, including the use of high-sensitivity C-reactive protein in the evaluation of patients’ risk of cardiovascular disease. These patents have been licensed to Dade Behring and AstraZeneca."

Fonte: Júpiter.

Como seria de prever, o que vem nos jornais acaba por extravasar o domínio de validade do próprio estudo (porque a maioria apenas leu o título do estudo, e o próprio estudo o omite nas conclusões), acabando por se pensar que esses resultados são aplicáveis a pessoas de todas as idades e condições, quando na realidade o estudo incidiu somente numa população específica, integrando homens com mais de 50 anos e mulheres acima dos 60 anos, 41 % dos quais com síndroma metabólico, mais de metade com excesso de peso, todos com níveis elevados de proteína C-reactiva (acima de 2 mg/dl), que se considera ser um marcador inflamatório. Ora, extrapolar desta população específica, nitidamente pouco saudável e de idade média 66 anos, para sugerir que toda a população, saudável ou não, pessoas como eu e você, beneficiariam de tomar estatinas, é no mínimo um exercício de grande "boa vontade"!

"Conclusions: In this trial of apparently healthy persons without hyperlipidemia but with elevated high-sensitivity C-reactive protein levels, rosuvastatin significantly reduced the incidence of major cardiovascular events. (ClinicalTrials.gov number, NCT00239681)."

Fonte: Júpiter.

Para o Dr. Michael R. Eades, a conclusão efectiva do estudo acaba por ser somente a de que os participantes do grupo de intervenção, consumindo 20 mg diárias de "rosuvastatin" durante 2 anos (estudo interrompido antes de chegar a meio, veja mais adiante porquê), conseguiram reduzir marginalmente o seu risco de desenvolver doença coronária ou de morrerem de uma causa qualquer, quando comparado com o grupo placebo. E fica-se por aqui o estudo em novidades, ponto final.

Mas há mais alguns aspectos do estudo que merecem reflexão. Por exemplo, apesar da extensa população analisada, de 17.802 indivíduos, quando se fala de mortalidade têm-se necessariamente pequenos números, pelo que estatisticamente é sempre possível, apesar da pequenez das diferenças absolutas, extrair diferenças relativas expressivas, as quais o estudo explora. Veja-se o exemplo do gráfico abaixo, em que as linhas inferiores, relativas à mortalidade total, são quase idênticas, pelo que só uma generosa sobreelevação de escala, no pequeno gráfico acima, permite "evidenciar" diferenças entre o grupo Crestor e o placebo.

Serão essas diferenças estatisticamente significativas, tendo nomeadamente em consideração que no grupo placebo estavam contidos 51 indivíduos a mais do que no grupo Crestor com histórico familiar de doença cardíaca coronária prematura, e também mais 71 indivíduos no grupo placebo com síndroma metabólico? Talvez estas sejam pequenas diferenças para o universo da amostra analisada mas, dado o risco de saúde acrescido que estas condições específicas implicam, possivelmente poderão ter contribuído para favorecer o grupo Crestor no diferencial de mortalidade total observado. Alguma vez se saberá?

E ao que parece, conforme alguém já referiu, embora algo indistinto no estudo mas nem por isso observável, terão ocorrido 9 infartes de miocárdio fatais no grupo Crestor, contra apenas 6 no placebo, o que aparenta indicar que o Crestor reduziu a incidência e ataques de coração em 47% mas, paradoxalmente, não conseguiu diminuir as mortes por essa mesma causa. Com efeito, a proporção de ataques de coração fatais no Crestor foi 29% quando comparado com os 9% no placebo.

Dr. William Davis, médico cardiologista americano, que considera o Jupiter "uma peça interessante de evidência semi-científica", refere que não há duvida que o Crestor reduziu em 44% eventos cardíacos não fatais, hospitalizações por angina, revascularizações e mortes cardiovasculares, e que a redução por ataques de coração foi a mais marcada, de 55%. Logo é de considerar que as estatinas funcionam, o que já se sabia. Mas faz notar que as suas preocupações são com efeito outras, digamos que situadas mais a montante. Por exemplo, antes de se receitarem essas estatinas, porque não se investigam as causas inflamatórias presentes, por exemplo, avaliando a sua relação com uma eventual deficiência em vitamina D? (a vitamina D, por si só, pode reduzir a proteína C-Reactiva em 60%).

Outra constatação curiosa. Quando o estudo terminou, 25% dos indivíduos do grupo Crestor tinham parado de tomar a estatina e não é revelada a parcela de mortalidade no grupo Crestor proveniente dos 75% que se mantiveram na medicação e a parcela do restantes 25%. E o estudo terminou a meio, antes dos 5 anos de prazo total previsto, alegadamente devido ao sucesso retumbante das estatinas. O Dr. Michael Eades refere ser muito invulgar um estudo destea natureza ser interrompido, não porque o grupo de intervenção esteja a morrer a uma taxa assustadora, como por vezes acontece, mas porque o grupo placebo está a morrer à taxa que, para todo o efeito, é a taxa "natural". Questiona também se a paragem não terá antes a haver com o facto do grupo do Crestor ter desenvolvido diabetes a uma taxa razoavelmente superior ao do grupo placebo, podendo tal implicar que a mortalidade final nos dois grupos se acabaria por equilibrar, sem evidencia de quaisquer diferenças no final dos 5 anos completos? Terá o estudo, porventura, sido interrompido devido ao sucesso retumbante do Crestor ou teria sido somente pelo facto de, naquele momento, os resultados serem já muito convenientes para o que se pretendia provar à priori?

Para Mark Sisson, se há algo que este estudo evidencia é que o colesterol total e a fracção LDL não são bons predictores de doença cardíaca, mas antes o são mais a oxidação das pequenas partículas de LDL, efectivamente aterogénicas, e o grau de inflamação evidenciado pela escolha da proteína C-Reactiva. Então porque não se reconhece este facto no meio médico, de uma vez por todas, e se abandona a ideia simplista de que o colesterol total deve ser controlado ou reduzido porque entope as artérias?

Também Jimmy Moore partilha desta ideia, referindo que a indústria vai agora aproveitar para tentar actualizar as actuais guidelines relativas ao colesterol (total), talvez reduzindo o limite superior para 180 ou mesmo 170 ou 160 mg/dl, o que é incrivelmente ignorante porque já está mais que demonstrado que o colesterol total é um marcador pouco relevante, em termos de risco cardiovascular, quando comparado com a relação HDL/triglicéridos e/ou com o tamanho das partículas de LDL.

Se pretende aprofundar este assunto, são de ler os seguintes artigos:

Rosuvastatin to Prevent Vascular Events in Men and Women with Elevated C-Reactive Protein, 09-11-2008 NEJM

Expanding the Orbit of Primary Prevention: Moving beyond JUPITER, Mark A. Hlatky, M.D.

Truth versus hype in the Jupiter study, Dr. Michael Eades

When the news sounds too good… statin, the new wonder drug, Junk-Science, Sandy Szwarc

Crestor Protects Your Heart With High Or Low Cholesterol? Come On!, Jimmy Moore

Advertising Passed Off As Research Confuses the Public Again, Dr. John McDougal

Can CRP be reduced? and CRP and Jupiter, William Davis

Cholesterol, heart attacks and Jupiter, Petro Dobromylskyj

Should You be Taking a Statin? What the Crestor Study Really Found, Jenny

Dangers of Statin Drugs: What You Haven’t Been Told About Popular Cholesterol-Lowering Medicines, Sally Fallon e Mary G. Enig, WAPF

Testing Treatments: better research for better health care

Uma coisa é certa: estude e informe-se, para se proteger desta medicina moderna, porque ninguém mais o fará por si!



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